sábado, agosto 25, 2012

Eurípedes e os deuses

No Centro Cultural da Justiça Federal, no centro do Rio, está em cartaz uma peça chamada Medeia en Promenade. Não se trata de montagem da famosa peça de Eurípedes, mas um texto de Clara de Góes, cuja encenação apresenta uma Medeia que dá continuidade ao texto do dramaturgo grego. Uma mulher no exílio, que anda continuamente a esmo, seguida de uma criada que se nega a abandoná-la e do fantasma da mulher que se tornou a causa de toda a tragédia, a filha do rei, jovem por quem seu marido a trocou.

É praxe na literatura quando nos deparamos com textos de períodos que não o nosso, tentar-nos colocar no lugar do leitor/ouvinte contemporâneo ao autor que os produziu. Dando um salto no tempo até o barroco brasileiro, dou um exemplo. Como devemos ler e/ou ouvir a poesia de Gregório de Matos num mundo como o de hoje, pleno de ruídos, impregnado pela presença ostensiva da imagem, obstáculos que às vezes nos sonegam a audição atenta à sonoridade dos seus versos?

Em relação ao teatro, podemos dizer o mesmo. Como observar a Medeia, de Eurípedes, aproximando-nos dos olhos e do pensamento de um grego daquele tempo?  É essa questão que me aflige quando vou ao teatro assistir a espetáculos que fazem algum tipo de releitura de textos clássicos. Algumas delas acabam por colocar na voz dos personagens problemas que eles não tinham e não viveram.

Não me atrevo a avaliar o mérito ou demérito da encenação de Medeia en Promenade, apenas discuto algumas das questões colocadas pelo texto. Medeia, que parte para o exílio permanente após o assassinato dos próprios filhos, está, num primeiro momento, mergulhada no esquecimento. A ama que a segue, inclusive, faz de tudo para não lhe reavivar a memória e, numa espécie de monólogo inicial, se refere ao habitat perdido como um universo extremamente masculino e opressor. A personagem principal é alguém que vaga por entre tempestades, em meio ao frio intenso e à contínua procura por abrigo. O fantasma da filha do rei Creonte aflige a protagonista, pois para mostrar o apodrecimento dos seres vivos arrasta um cachorro morto, e acaba por revelar o próprio corpo também apodrecido, queimado por Medeia no ato de vingança. O esquecimento de Medeia sobre o crime terrível que cometeu, no entanto, é apenas aparente, na verdade ela está consciente de seu ato. Além disso, não o justifica como vingança contra o marido, mas como um modo de fazer perdurar seu nome ante às gerações vindouras.

Não só o teatro grego, mas todo teatro tem algum tipo de moral a transmitir, mesmo independente da vontade do autor. Quando escreveu Medeia, querendo ou não, Eurípides conseguiu nos dizer que o destino não estava tão seguro nas mãos dos deuses. Os homens, e também as mulheres, segurariam com mais firmeza o leme de suas naus, assim poderiam melhor aportar onde bem o quisessem. A tragédia da mulher que mata os próprios filhos por ciúme ao marido talvez fosse algo até menor diante desse fato.

Na atual montagem, quando acossada pela pergunta do fantasma da princesa (ela quer saber o que restou do crime que a mulher de Jasão praticou), Medeia grita-lhe em resposta seu próprio nome; a seguir, aponta para fundo da cena, onde da escuridão acendem em luz forte as letras que compõem o nome "Medeia". Percebemos, então, ainda que de modo precário, um dos pontos fundamentais da moral da antiguidade clássica, moral essa mais presente no teatro de Eurípedes do que em qualquer outro do período: a insurgência do humano contra a supremacia dos deuses.

Como sempre estamos presos a uma boa história, apressamo-nos em condenar alguém que tenha praticado crimes classificados como hediondos, alguém, sobretudo, que pratica o imperdoável ato de sacrificar os próprios filhos. Mas esquecemos de perguntar: e para os deuses, quantos foram os sacrifícios?

Medeia em Promenade talvez traga a premência não da crítica ao mundo masculino, ou da crítica ao racismo (no texto de Clara, Medeia é negra), ou mesmo à condição do estrangeiro (nas cidades da Grécia antiga, a quarenta quilômetros de onde se morava já era terra estrangeira), temas tão comuns hoje, mas quase impensáveis para o homem grego; mas a necessidade de se compreender o ser humano como senhor do seu destino.

O crime de Medeia é apenas o leitmotiv de toda essa questão. Depois de Eurípedes, o Olimpo já não seria o mesmo.

sábado, agosto 18, 2012

Ler por prazer

Na semana passada, escrevi sobre o ofício de leitor, mas para isso tive de falar também do ofício de escritor. Não disse, no entanto, o que me levou ao assunto.

Não faz muito tempo, li uma entrevista concedida à Folha de São Paulo por Carlos Heitor Cony. Em determinado momento da conversa, entre uma pergunta sobre sua vida de jornalista e outra sobre sua vida de escritor, a repórter soltou: “o que lhe agrada mais, ler ou escrever?” O acadêmico, com humildade, respondeu: “gosto mais de ler, escrever é o meu ofício”.

Interessante a resposta, porque mostra que o escritor coloca-se como qualquer ser humano normal, não escondendo certo tédio ou fastio por seu trabalho, mesmo sendo este um ofício que dá destaque ao ser humano. Caso fosse alguém muito vaidoso, diria que gosta mais de escrever, e que tal prática é tão necessária quanto é a respiração para a sua sobrevivência. Mas Cony sempre foi humilde, a notoriedade procurou-o, ao invés de ele procurar por ela.

O ofício de leitor sempre é mais prazeroso. Nada melhor do que pegar de modo despreocupado um livro, lê-lo com avidez ou mesmo abandoná-lo caso não agrade. Nada de dar satisfações a alguém sobre a leitura, nada de ter a obrigação de fazer comentários sobre a história, ou ainda o pior, ter de escrever uma resenha sobre o livro. O leitor de jornal lê um ensaio em dez minutos, mas não sabe quantas horas, ou mesmo dias, o autor precisou para articulá-lo.

Faz pouco tempo, como comentei aqui na coluna, adquiri a mais recente tradução do Ulysses, de James Joyce. Como quem não quer nada, comecei a ler o livro mais uma vez. Minha esposa falou: “esse livro não precisa ser lido por inteiro, há várias pessoas que o leem em partes, tiram dele só o que interessa”. Ela é psicanalista lacaniana, sendo assim, a falta, para ela, é muito pertinente. Mas fui avançando, página após página e, com o passar dos dias, não peguei em outro livro (às vezes leio dois ou três ao mesmo tempo). Só parei quando cheguei à página 1106, a última do romance. Pensei, então: está bom, um livro lido apenas por interesse e prazer, nada de escrever sobre ele.

Mas se passaram dois ou três dias e chegou o prazo de mandar a resenha para o número de setembro da Folha Carioca. Eu tinha uma matéria já escrita, sobre um livro da Martins Fontes, mas achei que não era o momento de publicar aquele texto. O que escrevo, afinal? Então, a leitura despreocupada foi por água abaixo. Comecei a escrever o texto sobre o Ulysses da Penguin Companhia das Letras.

Lembrei-me do Cony e do sua preferência pela leitura, lembrei-me também da minha tentativa de ler por prazer. Não demorou muito e o meu texto ficou pronto. Esperei o dia seguinte. Sempre espero o dia seguinte para melhorar um texto, durante a madrugada às vezes me surgem algumas ideias.

Ao amanhecer, fui de novo ao computador. Revisei a matéria e acrescentei aquilo que achei necessário. Mandei, enfim, a resenha para a revista. Depois, lembrei-me: dois os meus fiascos nestes últimos dias. O primeiro foi não ter conseguido ler um livro na paz dos leitores; o segundo, não ter escrito a crônica semanal. A matéria sobre o livro de Joyce foi escrita na quinta e na sexta, dias em que escrevo a crônica para o blog. O que fazer, portanto?

Uma semana sem crônica não faz mal a ninguém. Então, esta semana não temos crônica. Ou temos? 

sábado, agosto 11, 2012

Ofício de leitor

Falo do ofício de leitor, mas começo pelo ofício de escritor.

Nos dias de hoje, apesar da precariedade do público leitor, observa-se o aumento do número de candidatos a escritor. Nos grandes centros, sobretudo, muitos jovens procuram editoras, que, sempre em déficit no orçamento, apressam-se em recusar seus textos. Em consequência, vemos o crescimento de editoras fundadas pelos próprios autores, ou o surgimento daquelas que cobram para publicar. Tal fato não é novo nem peculiar ao nosso país, já tendo passado pela experiência diversos escritores, o mais famoso deles foi Marcel Proust.

Outro fato que reflete a febre pela publicação é o aumento das oficinas de literatura. Em qualquer caderno cultural dos jornais, pode-se ler sobre a existência delas e sobre os expoentes que as ministram. Para o escritor, nada mal completar seu temerário orçamento ministrando aulas nessas oficinas.

Há também revistas que publicam contos depois de zelosa seleção, e há muita discussão quando os nomes dos selecionados são anunciados.

Portanto, poderíamos achar que vivemos numa sociedade em que se disputa o livro a tapa nas portas e nos balcões das livrarias. No entanto, não é isso que acontece. Quando observamos nossos índices de educação, logo constatamos que a leitura, uma espécie de produto de luxo, vem sendo praticada por pouca gente.

Existem vários motivos que afastam as pessoas dos livros. Há aqueles que veem importância na leitura mas dizem não praticá-la por falta de tempo. Na verdade, para se tornar leitor é preciso ter disciplina, e não tempo. Devido à grande oferta de afazeres que a vida atual oferece, parar para ler é fato extremamente complicado, exige meticulosa organização. Há pessoas que percebem a importância da leitura, mas sucumbem após avançar algumas páginas, pois não estão acostumadas à concentração que o livro exige. E também há os que vivem tranquilamente sem ler, não vendo necessidade alguma em tal ato.

Mas, por incrível que pareça, sobrevive o batalhão de pretendentes a escritor. Caso as editoras não tomem providências, a porta de cada uma delas encontrar-se-á sempre abarrotada desses seres que insistem em se apresentar com seus manuscritos sob o braço.

Diante desse quadro, como deve ser o ofício de leitor? Aquele que gosta do livro, que entra nas livrarias e silenciosamente olha cada exemplar, observa seus autores, a nacionalidade, se o livro é de poesia, se de contos ou romance, se ficção ou ensaio; aquele que mergulha na solidão das bibliotecas e permanece horas a fio seguindo os passos das personagens, percebendo a sonoridade dos versos, as ideias de um filósofo. Quem se aventura a exercer este ofício anônimo e meticuloso?

Outro dia, um editor afirmou: “caso cada candidato à publicação que recebo em meu escritório comprasse um livro da minha editora, a situação seria bem melhor, estaríamos em condição de, até mesmo, lançar jovens autores”.

Será que cada candidato a escritor compra livros e lê o tanto que deveria? Será que cada um consegue transmitir a paixão pela leitura àqueles a sua volta?

Nos dias de hoje, quase todos desejam ver-se catapultados pela cultura de massa. Há quem acredite que uma boa matéria num jornal de grande circulação, ou mesmo uma reportagem na TV, poderá alavancar a leitura e promover a venda de livros. Isso pode até acontecer, mas o resultado não será duradouro. O que promoverá a leitura é uma forte política de distribuição do livro e de facilitação da leitura, principalmente nas escolas.

Escritores (ou a candidatos a) precisam saber mostrar a graça que o livro possui, a magia que o envolve, e quem sabe o consigam com mais facilidade caso frequentem escolas e bibliotecas públicas, para lerem junto com jovens e estimulá-los a perceber o prazer que a leitura oferece. Assim, estarão exercendo também o ofício de leitor.

sábado, agosto 04, 2012

Peregrinação à montanha mágica

Quando estudante da escola secundária, Susan Sontag era uma garota quase como outra qualquer, não fosse a altura (era sempre a mais alta entre as alunas da classe), não fosse o afã pela leitura. Ela mesma diz: “eu sempre fora uma leitora infernal desde a mais tenra infância”. Após morar em várias cidades do sul dos Estados Unidos, sua família – composta pela mãe, padrasto, irmã mais nova e ela – deixa Tucson, Arizona, e muda-se para o sul da Califórnia. Ali, a jovem Susan começa a ter consciência de seu futuro. Ela viria a se tornar uma das mais importantes ensaístas e intelectuais americanas da segunda metade do século 20.

Em Peregrinação, texto publicado pela The New Yorker em dezembro de 1987 e só agora traduzido para o português (Revista Serrote, nª 11, Instituto Moreira Sales), Sontag narra sua infância e parte da adolescência, até fixar-se num acontecimento marcante na sua vida: o encontro com Thomas Mann, no final de 1947.

Aos quatorze anos de idade, a então adolescente já levantava algumas questões, como o desinteresse dos jovens pela leitura, a “baboseira de colegas de escola e de professores” e o estrago que a incipiente cultura de massa da época, tendo como ponta de lança o rádio, já começava a insinuar: “os programas semanais de humor, ornados com risadas enlatadas, a pegajosa parada de sucessos, a histérica narrativa dos jogos de beisebol e das lutas – o rádio, cujo móvel enchia a sala de estar nas noites de semana e em boa parte dos sábados e domingos, era um tormento sem fim.” Mas é a visita a Thomas Mann no seu exílio nos Estados Unidos, que antecipa, como uma premonição, o futuro da intelectual e pensadora americana.

Em Los Angeles, a alguns metros do cruzamento da Hollywood Boulevard com a Highland Avenue, ela encontra sua primeira livraria. Passa a frequentá-la, onde lê em pé os livros que mais lhe interessam. Em algumas ocasiões, com sua parca mesada, compra um ou outro. Mas sabia que seu dia chegaria, e que em algum lugar havia pessoas que pensavam de modo semelhante a ela.

Aprecia a música de Stravinsky, que podia ser ouvida em alguns concertos que frequenta gratuitamente com um ou dois amigos de escola. Ouve também “os guinchos e as pancadas” de John Cage, porque sabia que os jovens de sua geração deviam gostar de “música feia”.

O que Stravinsky era para ela na música, Thomas Mann tornou-se na literatura. Em novembro de 1947, compra A montanha mágica. Começa a ler naquela mesma noite, e durante algumas das noites seguintes diz que sentiu falta de ar enquanto lia. “Pois aquele não era simplesmente mais um livro que eu adoraria, era um livro transformador, uma fonte de descobertas e reconhecimentos.”

Merril, um dos colegas de escola com quem ela sempre passeia, sugere que procurem na lista telefônica o nome de Mann, que mora na mesma cidade dos dois. Na Califórnia daquele tempo, mais precisamente em Hollywood, quem tinha muitos fãs eram os artistas de cinema, portanto, Thomas Mann, embora fosse uma figura pública, não seria difícil de ser contatado. Ele atende ao pedido e marca a visita para o domingo seguinte.

Susan mostra-se constrangida durante toda a entrevista, teme cometer qualquer tolice. Repara que Mann fala devagar. A jovem pergunta-se se não teria sido um erro visitá-lo, pois já o conhecia bem de seus livros. Talvez a vagarosidade de sua fala tivesse como causa o fato de o inglês não ser sua língua natal ou, quem sabe, ele desejasse que os estudantes o compreendessem bem.

A conversa a princípio gira em torno de literatura. Depois, sua mulher, Kátia, serve o chá. Mas a conversa continua. A jovem Sontag observa a mesa de trabalho do autor, os objetos de adorno, como estatuetas, fotografias, os quadros nas paredes, os livros; então, surpreende-se ante a primeira biblioteca particular que vê na vida.

Mais adiante, o escritor quer saber sobre eles. A jovem se constrange ainda mais. O que vai dizer? Tem vergonha da escola onde estuda. Já não ensinam Latim nem Shakespeare, há aula de autoescola e datilografia, há até um aluno que tem uma arma e assalta frentistas vez ou outra. Mas Mann precisaria saber dessas coisas? Ele já tinha problemas demais: o exílio, a destruição que o nazismo causara em toda a Europa; sua cidade natal, seu país, a Alemanha, ficavam muito longe. O romancista era um deus no exílio. Bom quando ele falou sobre o seu último livro, que estava sendo traduzido para o inglês naquele momento (Doutor Fausto), melhor quando citou A montanha mágica como sua principal obra até ali. Susan e o amigo se decepcionam quando ele diz que Hemingway seria o escritor americano mais representativo. Verdade? Será que o famoso Thomas Mann gostava de Hemingway?  Os dois não o tinham lido, não o apreciavam. Seu amigo diz gostar de Romain Rolland, pensando em Jean-Cristophe; de Joyce, do Retrato. Ela diz apreciar Kafka, de A metamorfose; Tólstoi, dos últimos escritos religiosos e dos Romances; cita Jack London para não faltar um escritor americano. Mann acha-os jovens muito sérios, talvez destoantes do espírito americano (“dizia que sempre gostara de conhecer jovens americanos, que mostravam o vigor e a saúde e o temperamento fundamentalmente otimista desse grande país”). Em certo momento, o autor de Os Buddenbrooks fala sobre o valor da literatura e a necessidade de proteger a civilização contra as forças da barbárie.

No final da tarde, a ainda quase menina Susan e seu jovem amigo partem, com um sol poente que parece bastante luminoso. Ou seria a impressão deixada pelo escritor?

Anos mais tarde, ao escrever Peregrinação, Sontag relembra o episódio como o fim de um ciclo. Sua entrada para a Universidade da Califórnia, em Berkeley, depois a transferência para a Universidade de Chicago, a opção pela filosofia e pela carreira de escritora, escolhas ainda impensadas quando estivera lado a lado com Thomas Mann. A era Roosevelt se encerrara, e a Guerra Fria estava começando. O escritor e a família definitivamente deixam os Estados Unidos depois de uma estadia de quinze anos, tinham até se tornado cidadãos americanos. Mann vivera na Califórnia mas, na verdade, seu pensamento jamais estivera ali.

Susan Sontag faleceu em 2004 e, assim como Mann, sempre acreditou na literatura e na filosofia, fez dessas matérias sua vida e usou a escrita para lutar contra as ortodoxias e preservar a liberdade, uma forma também de proteger a civilização contra as forças da barbárie. Ainda que isso não seja possível neste período de capitalismo tardio, que ao menos aconteça como na sua primeira leitura de A montanha mágica: que a literatura e a filosofia possam ser transformadoras, fontes de descobertas e de reconhecimentos.