segunda-feira, janeiro 19, 2015

A arma possível

“Safári”, romance de Luís Dill, discute a banalização da violência

Obras literárias sempre refletiram as intempéries de seu tempo. Entre nossos autores, é possível observar que, mesmo em períodos de relativa estabilidade política, econômica e social, contos, romances e poemas colocaram em questão os problemas mais prementes da época. Foi assim com José de Alencar e Machado de Assis. O primeiro criando um romance que estabelecia uma nova ordem brasileira sobre o poder e o modo de vida portugueses, de quem estávamos recém-libertos; o segundo, dando universalidade a uma vida de província. Castro Alves foi outro mestre neste caminho, soube alçar a escravidão ao patamar estético, ao mesmo tempo que seus poemas municiavam a sociedade pela abolição. Com os modernistas o engajamento continuou de modo ainda mais intenso. Lutou-se diretamente contra o colonizador estrangeiro, personificado no vilão de Macunaíma. Nos romances regionalistas dos anos 1930, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e mesmo um José Lins não se esqueceram de dirigir suas penas contra o atraso político, social e econômico a que era submetida grande parte da população brasileira.
Na contemporaneidade às vezes se chega a pensar que a literatura sucumbiu ao poder do dinheiro, levando escritores a construírem histórias mais amenas e de forte apelo mercadológico, com narrativas que envolvem mistério e magia, em que poderes ocultos teriam capacidade de livrar os humanos dos “diabólicos azares”.
Esta arte feita de palavras, no entanto, mesmo desfeitas as ilusões, jamais renunciou ao desejo de realizar alguma utopia. Sua própria existência é até certo ponto utópica. Hoje se sabe que não é possível através de narrativas, poemas ou dramaturgia mudar a economia, ou livrar o povo de tiranos. Para que isso aconteça é necessário outro tipo de preparo. Mesmo assim continuam-se escrevendo romances, novelas, contos e poemas que trazem à tona o desejo de esquadrinhar o presente e, já que não é possível apontar soluções, ao menos tocar na ferida, para que sangre de modo mais intenso.
É isso que se percebe após a leitura de Safári, de Luís Dill, um romance que nos faz mergulhar no cerne da violência urbana das grandes e pequenas cidades brasileiras e, quem sabe, também na de cidades de países desenvolvidos.
Trata-se de um romance bem urdido, em que convivem em harmonia duas vozes narrativas. A primeira, aparentemente impessoal, nos traz a trama; a segunda apresenta as reflexões e reminiscências de um narrador em primeira pessoa.
O enredo tem como foco principal uma conceituada firma de advocacia cujo escritório localiza-se num prédio próximo a uma favela conhecida como Vila da Fumaça. Tal proximidade trará à luz as contradições existentes entre uma classe favorecida e outra pobre ao extremo. Esta, se não vive da criminalidade, precisa pelo menos conviver com ela. Sem dizer o nome da cidade onde a história transcorre, o autor coloca em questão o difícil relacionamento entre as várias camadas da população nas cidades, fato sempre mascarado pelos meios de comunicação, os quais gostam de semear a ideia de que em nosso país não existem preconceitos e, caso isso aconteça, são logo combatidos. A suposta igualdade de condições provoca a ira de segmentos mais abastados. Eles gostariam dos pobres longe da sua vizinhança. Outro aspecto discutido pelo livro é a facilidade de se conseguir armas, privilégio para os mais variados segmentos sociais. E neste livro não são apenas os traficantes que gostam de ostentar o poder de suas pistolas e fuzis. Trata-se de um romance que não é agradável aos espíritos mais sensíveis.
Força da ideologiaJá no início, o leitor é capaz de perceber a força da ideologia dominante a estabelecer comportamentos individuais extremamente bélicos. Nada a ver com a nossa luta política nem com ditaduras passadas. Trata-se de um embate em que o Direito leva a desvantagem, ficando a solução nas mãos da violência.
Desfilam ante nossos olhos uma fauna humana composta por pessoas de todas as classes sociais. A mais alta, no entanto, é a mais cruel. Como contraponto, Dill cria um personagem às avessas, um detetive verdadeiramente romanesco, que vai proporcionar alento ao sofrido leitor.
Quando se termina a leitura, pode-se chegar à conclusão de que qualquer narcotraficante, mesmo municiado pelas armas mais letais, estará abaixo do ardil e da sagacidade daqueles que tiveram acesso aos bens da alta cultura e os tomaram em proveito próprio.
Outro ponto importante revelado é a hierarquia de valores seguida por seus personagens. Sem querer estigmatizar qualquer tipo de cultura ou de reiterar o lugar-comum de criticar o modelo de vida norte-americano, o romance discute a obrigação de se ter de ganhar cada vez mais dinheiro, mesmo que seja necessário assassinar a ex-mulher para não se fazer a partilha dos bens. O resultado disso tudo é o estabelecimento de uma sociedade onde a competição atingiu tamanha magnitude que, sem exagero algum, podemos chamá-la de militar. Tal atitude provoca nas pessoas comportamentos similares, como num efeito dominó. Assim, não surpreende a possante arma usada por um dos personagens, com a qual exercita a sua justiça.
A literatura sempre fracassou quando tentou mudar o mundo. Seus autores são melhores na descrição de cenários e na narração da barbárie, mesmo que perpetrada por agentes da civilização. Ela também não é a droga vendida e transportada pela tele-entrega dos traficantes deste Safári. Nem é o projétil que sai certeiro da arma do atirador travestido de advogado.
Portanto, mesmo que o leitor sinta-se saturado da violência apresentada todas as noites nos telejornais, o livro de Dill não se mostra redundante. Ele serve como o fio de Ariadne, artefato que torna a arte essencial. O leitor que segui-lo com honestidade poderá transformar o seu modo de olhar o mundo. Aqui talvez entre o papel fundamental da literatura, que é o de revelar. O que fazer a partir dessa revelação é que se torna o grande problema.