Bonecas russas
Eliana Cardoso
Companhia das Letras
97 páginas.
Eliana Cardoso traz à
cena mulheres que protagonizam seus próprios destinos
O ser humano é um ser cultural, vive sempre criando
transcendências, sentidos e significados que vão além do caráter utilitário de
cada objeto – os próprios objetos em si tem seu fundamento metafísico. E a
literatura é a medida desse mundo da cultura, da transcendência. Mesmo que não
se queira mergulhar fundo, a atividade de escrita acaba por revelar conceitos
que estão muito além daquilo que pensamos quando escrevemos. Apenas por isso,
já se pode perceber a necessidade da imaginação. O consequente ato de contar
histórias não está dissociado deste universo.
Outro fato interessante é que acabam sendo nomeadas como
arte e, no nosso caso, como literatura as obras que tocam o caráter trágico da
existência humana. Os personagens temperamentais, soturnos, que pouco sorriem,
normalmente são os que permanecem. Corrobora esse conceito os livros de Dante,
Shakespeare e Dostoievski, entre outros. O próprio personagem que visita as
três esferas, na Divina Comédia, Hamlet ou mesmo Otelo, Ivan ou Dimitri
Karamazov, são personagens pungentes e trágicos. Como situar a literatura da
sutileza nessa marcha conturbada de personagens que habitam a literatura
universal?
Acredito que haja resposta plausível. Na sutileza também é
possível encontrar o nível trágico da existência. Sua representação, portanto,
não se tornará menor. É o que acontece no romance Bonecas Russas, de Eliana Cardoso.
A narrativa, que aborda a vida de várias mulheres, começa
com as duas primas, Leda e Lola, num diálogo em que, como revela o título do
capítulo, Leda aparece nua. Mas ambas já não são jovens. Leda pergunta à Lola:
“Quero saber o que você vê”, e Lola prontamente responde: “Uma velha pelada.”
Este início imprime à narrativa certa desmistificação a respeito do corpo
feminino e, ao mesmo tempo, insere a sutileza como componente catalizador do
que se poderia nomear de trágico. Adotando tal artifício, a autora não apenas
se contrapõe ao conceito contemporâneo de beleza e a como as mulheres são
vistas na sociedade, mas acaba conduzindo o leitor a um patamar acima, fazendo-o
flertar com o trágico, pois o envelhecimento e o perecimento estão à vista. No
âmbito da história, este desnudamento – podemos entender assim a alegoria – arrasta
consigo importantes consequências. As mulheres não serão somente microcosmos da
humanidade, mas se mostrarão nuas também em relação aos seus sentimentos e
angústias.
Apesar de o romance começar com uma quase brincadeira, pouco
a pouco ele se vai revelando de uma intensa seriedade. O retorno à infância de
Leda e a descrição do mundo dos adultos sob a perspectiva de uma criança
alimentam buscas a tempo e atitudes perdidos. Estes, logicamente, não podem ser
recuperados. Sua mãe, Francisca, foi uma artista plástica, uma ceramista, e
Leda vivia em meio às obras de artes produzidas por ela. Mas a mulher não lhe dava
atenção, acabou trocando marido e filha pelo amante e partindo a seguir para o
exterior. Morando na França, onde permaneceu até o fim da vida, Francisca verá
a filha apenas uma única vez. Leda a visitará quando já adulta. E essa visita
acontece no mesmo ano em que Francisca vem a falecer. É um momento pungente da
narrativa.
Dentre as possíveis leituras que o romance oferece, há a
trajetória das mulheres, suas escolhas e tentativas de serem donas do próprio
destino. Uma velha questão é abordada aqui. Como amar sem que o casamento ou a
maternidade escravize essas mesmas mulheres? Muitas vezes, no afã de optar pela
realização do desejo, elas são tomadas pela culpa, da qual jamais conseguirão
livrar-se. É o caso de Francisca em relação à Leda. Outro fator é que a
juventude um dia acaba, e todas as pessoas precisam se defrontar com os danos
causados pelo passar dos anos, sobretudo quando se começa e envelhecer e é
necessária a convivência com a juventude e o vigor presentes na nova geração.
Quanto à forma, o romance é dividido em vinte capítulos, todos com títulos, e construído por várias vozes. Quase todos os personagens principais, e são muitos, têm o seu momento de narrador. Há também capítulos compostos por com cartas e mensagens de e-mails. Essa estratégia torna a narrativa difusa, acentuando as características de cada personagem e ressaltaltando a fragmentação, já discutida e sempre retomada na literatura desde o início do século 20.
O fantástico também se apresenta num dos capítulos do livro,
narrado a partir da perspectiva de Leda, que sempre gostou de inventar histórias.
Eis o resumo do trecho. Leda visita um excêntrico padre chamado Mateus, que
teima em afirmar que conversa com anjos e arcanjos. Em uma das histórias, os
anjos aglomeram-se sobre a cabeça de um alfinete e se põe a formar uma incrível
escada, o desafio maior é que mantenham a formação, uns sobre os outros. O fato
é possível enquanto do aparelho de som vem a música de Noel Rosa “Com que roupa”.
Aqui, por incrível que pareça, a autora procura desenvolver uma sedutora tese
sobre o tempo e o espaço: “o espaço não só pode ser multiplicado como também
dividido infinitamente, sem que se chegue ao nada. Bastava lembrar que era
possível dividir o tempo sem se chegar ao tempo zero e dividir o movimento sem
se chegar ao repouso.” No final das contas 308.428 anjos posicionam-se sobre a
cabeça de um alfinete. A alegoria pode ser interpretada de várias maneiras,
sobretudo num momento delicado para a instituição religiosa conhecida como
Igreja Católica Apostólica Romana. Mas o padre mantém a fantasia de Leda,
conversa com os seres invisíveis e traduz a conversa para ela. No final, a
ainda menina chega à conclusão de que ele acabaria expulso da igreja por
promover heresias.
A metalinguagem é uma questão que tem sido trazida à tona em
muitas obras de arte, sobretudo quando se trata de literatura. Por outro lado,
há autores em que este artifício passa despercebido, privilegiando os
acontecimentos e conflitos com o intuito de manter o leitor preso ao enredo. Mas
neste romance, tal como a exposição do corpo feminino apresentado no início da
narrativa, a metalinguagem está a martelar sua presença exibindo-se cada vez de
modo mais intenso. Isso ocorre quando a história é centrada na imagem de Leda,
que está a escrever um diário ou, de modo mais amplo, quando a autora usa a
narrativa para falar sobre arte. Há também muitas menções a escritores e
artistas plásticos. Esta atitude gera duas consequências. A primeira é que a
narrativa pode ser permeada pela beleza das obras descritas, criando uma
atmosfera de requinte ao romance. A segunda consequência é temerária, porque
pode denotar certa insuficiência narrativa compensada com a referência a tais
obras. No livro de Eliana Cardoso há referências excessivas às artes, fato que
frequentemente desvia o foco do que está acontecendo. Portanto, cabe ao leitor
julgar a pertinência ou não da estratégia da escritora. Grande parte dos
autores da atualidade tende a abandonar o recurso da metalinguagem por acreditarem
que seu uso tornou-se desgastado nos últimos anos, pois inúmeras obras perderam
o sentido porque passaram a ter como foco elas mesmas. Por outro lado, um
exemplo de pertinência é a novela “Max Ferber”, de W. G. Sebald, em Os emigrantes. Nesse livro, no entanto,
a presença do pintor alemão com sua arte fuliginosa é o retrato da tragédia que
se abateu sobre sua família e sobre grande parte da Europa em meados do século
20.
Eliana Cardoso
Nasceu em Belo Horizonte. Formou-se em economia na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, concluiu o mestrado na
Universidade de Brasília e o doutorado em economia no Instituto de Tecnologia
de Massachusetts (MIT). Trabalhou para o Banco Mundial na China, na Índia, no
Paquistão, entre outros países da Ásia, e foi professora da Fundação Getúlio
Vargas (FGV). É autora de outros nove livros e tem mais de quarenta trabalhos
publicados em revistas acadêmicas. Atualmente é colunista do Valor Econômico e mora em São Paulo. Bonecas Russas é o seu primeiro livro de
ficção.
Trecho:
Fui visitá-la em 2007 numa viagem a Paris.
Ela continuava elegante e se perfumou para caminhar comigo nos jardins de
Luxemburgo. Parecia mais jovem do que eu. Ainda gostava de ostras e champanha.
Tinha abandonado a cerâmica a pedido de “cher”, que perdera o “mon” e o “e”
prolongado. Perguntei sobre o vaso violeta e ela se mostrou surpresa.
– Rosália nunca mencionou a falta de um
vaso no vernissage. A exposição foi um sucesso.
E se calou, fechada em lembranças nas quais
eu não estava. Suamãe morreu naquele
mesmo 2007. De repente. Como um vaso de barro que voa, rodopia no ar e se
estilhaça com a queda. Ainda hoje dói não ter sabido fazê-la minha.
Haron Gamal
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